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Escondidas no sotão

Também tens muitas más ideias?

E boas ideias, também tens?

Tens de ter boas ideias com frequência?

Num jantar convívio da tribo do THU falava com um jovem artista sobre esta questão de ter de ter ideias para clientes, para trabalhos nossos, e fiquei a pensar sobre como temos tendência a exigir que das nossas cabeças só saiam excelentes ideias.

Quando sei que preciso de ter ideias para um texto, um logotipo, perguntas para convidados, um desenho, uma ideia de negócio exijo de mim apenas o melhor, caso contrário nem vale a pena começar.

Mesmo para me sentar a escrever este texto andei a resistir, a colocar o estudo que tenho de fazer à frente até já não deixar mesmo passar de hoje a escrita da minha reflexão semanal. Não sentia e não sinto que tenha algo de extraordinário, de extremamente inovador para partilhar.

O problema é quando nos deixamos parar por aquilo que o Steven Pressfield chama de “A Resistência”, quando ficamos parados à espera daquela ideia maravilhosa que nunca ninguém se lembrou, ou aquela solução que vai deixar todos de boca aberta a considerar-nos o maior génio à face da terra.

Não acredito que o Einstein tenha achado que iria ser falado hoje em dia por aquilo que fez, que antes de começar a escrever e a estudar a teoria da relatividade se tenha exigido que essa teoria fosse mudar o mundo como mudou.

Não acredito que o Mark Zuckerberg achasse que aquela brincadeira para conhecer miúdas na universidade se viesse a tornar na maior rede social do planeta, nem se exigiu isso quando começou.

Então porque é que a maior parte de nós acha que só pode ter, explorar e trabalhar em ideias que achamos ser ouro puro?

Outra questão aqui é que muitas vezes as tais ideias que achamos ser as melhores vêm a revelar-se fracas, medianas ou por vezes péssimas.

Lembrei-me então da analogia que o espaço das nossas ideias será como um enorme sotão, com muito lixo, com coisas antigas, coisas que fomos guardando ao longo dos anos, aquelas coisas que achámos virem a ser úteis num qualquer futuro próximo, mas tudo isto ia sendo despejado sem grande critério.

Ora o que aconteceu no nosso sotão foi que o lixo e as coisas valiosas que quisemos guardar acabaram por ficar misturados, e quando queremos ir buscar o que tem valor não é fácil, o lixo tapa as coisas valiosas, o pó, a sujidade e a falta de luz no sotão transformam caça por aquela ideia excelente uma verdadeira busca de um tesouro perdido.

Quem já teve de arrumar uma arrecadação, um sotão, uma garagem, sabe que para chegar àqueles items que nos propusémos encontrar temos na maior parte dos casos de começar a tirar tudo o que lá está, para fora ou começar a separar objectos por tipo, colocando uns dum lado, outros de outro, separando o que é lixo, o que é para ficar e o que é para dar alguém que nos tinha emprestado e temos de devolver, ou mesmo alguém que vai dar uso a uma coisa que para nós se tornou apenas tralha.

Voltando às ideias depois desta volta pelo sotão.

Com as ideias passa-se a mesma coisa, temos ideias boas, recortes de coisas que gostámos, mas também temos aquelas ideias que podem servir a outros e aquelas que são lixo.

Para termos acesso às boas ideias temos de lidar com as más ideias, para as encontrarmos temos de abrir a janela do sotão, acender a luz ou levar uma lanterna, não é ficando à porta do sotão à espera que aquilo que pretendemos tirar de lá venha ter connosco.

A vida criativa implica andar a lidar com lixo, objectos partidos, coisas que considerámos valiosas mas que já não têm assim tanto interesse para nós, lidar com pó, sujidade, ferrugem, traças, teias de aranha, mas tal como nos sotãos quantas mais vezes arrumarmos o sotão em vez de simplesmente largar lá coisas, mais facilmente chegamos a melhores ideias.

Adianta pouco esperar só termos boas ideias, adianta pouco eu esperar que este texto se escreva sozinho, e que seja o melhor texto que alguma vez escreverei, mas mesmo que não seja muito bom, é algo que fui buscar ao sotão, abri as janelas, encontrei lá outras coisas que já nem me lembrava, encontrei ideias que posso passar a outros que lhe irão dar melhor uso, e sei que as próximas vezes que lá for, já vou conhecer melhor o caminho, vou reconhecer onde estão arrumadas umas coisas que são para usar no futuro, mas sobretudo vai haver um caminho dentro do sotão para percorrer, não será um daqueles arrumos onde nem conseguimos entrar e que estão sempre à espera do dia em que finalmente serão arrumados.

Se tens o sotão das ideias muito desarrumado, começa a ir lá mais vezes, faz aquele desenho que não presta, escreve aquele texto fraquinho, explora aquela ideia de bolos recheados de carne de porco e creme de chocolate com chouriço, partilha com um amigo a ideia que tens para um filme, por muito mau que te possa parecer será menos uma coisa a bloquear a entrada, e quem sabe o teu amigo junta umas roupas velhas da arrecadação dele e faz um filme sobre a moda dos subúrbios nos anos setenta.

A mensagem ficou para mim clara ao ter a conversa que tive, mas sobretudo ao escrever e explorar este conceito que me pareceu de pouco valor ao início, não adianta esperar e acumular por acumular, se não temos neste momento boas ideias, comecemos a trabalhar com as más, iremos ficar mais treinados na dinâmica das ideias, iremos juntar horas de prática e quando aquelas melhores ideias forem surgindo do sotão saberemos muito melhor o que fazer com elas, da mesma forma que não damos o melhor pedaço de madeira e as melhores ferramentas que temos ao jovem aprendiz de escultura que está a começar.

O Miguel Góis dos Gato Fedorento falou que aquilo que os safou foi o facto de serem quatro, que todos tiveram fases de nenhumas ideias ou ideias muito fraquinhas, que muitas vezes a junção de ideias muito fraquinhas deu como resultado ideias que se tornaram muito melhores.

Se os grandes arrumam o sotão e por isso se tornam grandes, não sei, mas sei que um sotão fechado não serve a ninguém.

Aproveita o ano novo para arrumares a casa e quem sabe descobres aquilo que andavas à procura.

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