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Poderemos nós deixar que um momento defina a nossa vida?
Na passada segunda-feira fui ao Colóquio Desporto, Ética e Transcendência na Universidade Católica Portuguesa, um evento gratuito que reuniu pessoas ligadas ao desporto, atletas, treinadores, comentadores, e pessoas de outras áreas como filósofos, sociólogos, teólogos, uma combinação muito interessante de pontos de vistas.
Houve um momento que me marcou particularmente, que foi o testemunho do ex-recordista Mundial dos dez mil metros, o Fernando Mamede, quando ele contou o episódio da sua desistência da final da dita distância nos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984. Comoveu-se, e percebeu-se a dificuldade em falar do assunto, que aquele momento definiu a sua vida daí para a frente. A sensação com que fiquei foi a de que ele nunca ultrapassou psicológicamente o sucedido, e que o fantasma do seu “falhanço” o assombra ainda hoje, trinta e quatro anos depois.
Referiu que há até jornalistas que fazem por vezes o comentário relativamente a atletas que se vão abaixo nos momentos de pressão, como sendo isso o “síndrome Fernando Mamede”.
Mas numa história cheia de glórias, de superação noutros momentos, porque razão alguém escolhe cristalizar um momento para definir o resto da sua vida?
Nas suas palavras, ao falar sobre o sucedido diz “devo ter algum problema”.
Será que ele tem um problema?
Não o teremos todos?
Quem é que nunca falhou no momento em que as expectativas são altas?
Falo por mim, mas sei que falo por muita gente quando digo que todos passamos por momentos desses, talvez em menor grau de importância colectiva, mas o mesmo grau de importância para a pessoa que fica desesperada, que desiste, que não consegue dar nem mais um passo, que fica com a garganta seca, que não consegue dizer nada, que chora, que foge do local…
O momento em que começamos a olhar para algo como muito importante, quando começamos a deixar que as expectativas que os outros têm relativamente ao nosso desempenho, mas também aquelas que são as nossas, é o momento em que começamos a desenhar um caminho para a desistência, para a auto-sabotagem.
A pressão que sentimos é interna, por muito que os outros nos pressionem, aquilo que sentimos é resultado de permitirmos que essa pressão entre no nosso sistema, ninguém tem a capacidade de nos fazer sentir algo se nós não o deixarmos, mas mais importante ainda é quando pegamos nas expectativas dos outros, multiplicamos pelas nossas e ainda somamos a vergonha que temos se algo correr mal.
Não sou imune a pressões, sou até o principal criador das minhas, mas começo a reconhecer a importância de algo que já falei aqui, que é o discurso interno, o que me digo sobre as consequências, e o que me digo sobre a pessoa que serei se algo falhar, e é no momento que reconheço o discurso interno que posso fazer alguma coisa, posso até perguntar “Queres que um só momento defina a tua vida?”, e qualquer pessoa sabe que a vida é feita de um sem fim de ligações, de situações, de pessoas, locais, que contribuem para a riqueza mas também para a complexidade de todo e qualquer momento, por essa razão nunca um momento pode cristalizar a pessoa que sou, que fui e posso vir a ser.
É fácil perceber que a pressão que um pilar de uma casa sofre se for o único, e também é fácil perceber que posso aumentar as cargas, e a pressão se em vez de um, eu tiver quatro ou cinco pilares, então porque razão tendemos a isolarmo-nos quando sentimos a pressão a aumentar sobre nós?
Não será bem mais produtivo reconhecer que não estamos sós? Há sempre alguém disponível para nos ouvir, para colocar em causa muitos dos pensamentos parasitas que só nos fazem ver o lado mais negro, e também ajuda reconhecer que fazemos parte de algo maior que nós, que a humanidade que temos é partilhada por tantos outros, que no momento em que nos reconhecemos nos outros, e os outros se reconhecem na nossa situação, tudo fica mais leve.
Aquilo que não ajuda nada é acharmos que por sentirmos pressão, por falharmos, por desistirmos, temos um problema, se o tivermos, o único problema é tentar fazer algo que ainda ninguém fez ao nível que queremos fazer.
Sempre, sempre uma questão de escolha, esta luta entre escolher ser uma coisa boa porque está do nosso lado, e ser uma coisa má porque está do nosso lado, e não podemos culpar nada nem ninguém, por isso a decisão mais acertada será escolher o que faz mais sentido para nós, partilhar as nossas inseguranças e em conjunto chegar mais longe.
Cair, todos caímos, e nunca ninguém disse que nos tínhamos de levantar sozinhos.
O momento seguinte é sempre aquele que eu escolho, o seguinte a um mau resultado, o seguinte a um mau pensamento, o seguinte após a minha queda, esse será sempre mais importante que o primeiro, há que escolher bem.
Qualquer coisa, rui@falarcriativo.com.
[…] Desta vez a minha convidada é a Ana Santos, socióloga e antropóloga, que fiquei a conhecer quando fui ao Colóquio Internacional Desporto, Ética e Transcendência 2018, colóquio esse que já referi no episódio momento seguinte. […]