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Rituais

“We are what we repeatedly do. Excellence, then, is not an act, but a habit.”

Will Durant

Ontem reenviei um email a convidar uma pessoa que queria muito ter no podcast.

A pessoa em questão tinha dito que sim, sugeriu uma data, no mesmo dia respondi, nunca obtive resposta.

Como estas coisas acontecem, cinco meses depois enviei novo email a perguntar se ainda havia disponibilidade. Tive uma resposta automática a dizer que a pessoa estava de férias. Tudo normal.

Passados dez minutos de reenviar o email ontem, obtive uma resposta extremamente seca, referindo que eu haveria ignorado o email por cinco meses, enviado um novo email como se nada fosse, e a informar-me que já não haveria interesse e disponibilidade para ser entrevistada. Caiu-me tudo.

O sangue veio a uma velocidade assustadora para a minha cabeça, senti a cara quase a explodir, senti-me pequenino, como se me tivessem levado com cinco anos a um mega centro comercial e me tivessem deixado lá, com todas as pessoas a apontarem-me o dedo e a dizerem-me – Foste rejeitado.

Aquilo que me assustou na minha reacção foi a sensação de fragilidade que um simples email, ainda por cima um mal entendido despoletou em mim.

A pessoa que o escreveu reagiu sabendo apenas parte da história, se não recebeu a tal resposta que ao que parece não chegou ao destino, eu fiz tudo o que poderia ter feito, em momento algum tive má intenção, no entanto reagi como se tivesse feito algo de profundamente errado.

Reagimos assim porquê?

Porque fomos condicionados pelas reacções das pessoas à nossa volta a fazê-los sentir-se bem, a ter a resposta certa na ponta da língua, a nunca falhar, e a nunca considerar imprevistos e mal entendidos. Todos assumimos que se estou mal, alguém me fez sentir assim, e/ou é obrigação dos outros fazerem-me sentir melhor. Nada disso.

A escola espera que saibamos as respostas certas, os nossos pais e amigos assumem que é parte do contracto de partilha de espaço transformar o dia dessas pessoas em algo melhor, porém ninguém nos vai conseguir fazer felizes se nós não formos capazes de aceitar a responsabilidade de cada um pela sua própria felicidade, é um trabalho interno, e nunca poderá ser de outra forma. Desengane-se quem acha que quando encontrar as pessoas certas, seja no trabalho ou em qualquer outro sítio onde haja relações pessoais, tudo vai ficar perfeito, agora e para sempre.

Já referi a importância de nos rodearmos de pessoas que nos apoiam, mas que também nos questionam e desafiam, mas a base, o centro somos nós, as nossas escolhas de todos os dias.

É aqui que entram os rituais, foram esses rituais que ontem me salvaram.

Todos os dias, logo a seguir a acordar e ir à casa de banho, uso um diário com perguntas que me fazem reflectir sobre algo, é um diário ligado ao estoicismo, acompanhado por um livro que tem reflexões de filósofos, e que me permitem confrontar as minhas ideias com ideias que têm milhares de anos, e que por essa razão resistiram ao teste do tempo.

Ainda meio a dormir confronto-me com crenças que tenho, e ao mesmo tempo melhores maneiras de olhar para as coisas.

Por essa razão ontem, após a avalanche de emoção que um simples email provocou, lembrei-me da minha frase preferida do imperador Marco Aurélio:

“Escolhe não te sentires atingido, e não te sentirás atingido. Se não te sentes atingido, é  porque não o foste.”

Ao entrar em acção uma racionalização, e sobretudo uma nova perspectiva, um novo olhar sobre o assunto, foi possível travar a avalanche, talvez não travar, mas ter a capacidade de olhar em redor e encontrar um abrigo temporário onde pude recuperar forças, e olhar para a situação apenas como um mal entendido, em que ninguém poderia ter feito nada de diferente, e aceitar o lado caótico da vida, não controlamos quase nada, apesar de acharmos que sim.

Os rituais são uma forma eficaz de ir arranjando umas bóias, uns abrigos temporários, que reforçam as nossas capacidades para lidar com o que inevitavelmente irá acontecer, nunca é “se”, é sempre “quando”.

Se não tens rituais, fica sabendo que tens o ritual de ser levado por tudo o que acontece à tua volta, mas sem qualquer tipo de influência da tua parte, és uma bola de pinball a bater de situação em situação, vais-te perdendo nos acontecimentos, absorvendo todo o caos que te rodeia constantemente, afastas-te do teu centro, o local da tua força. Todos os grandes líderes, e todos os grandes criativos têm rituais, nem que seja o ritual de todos os dias se sentarem a escrever, o ritual de todos os dias ir para o atelier pintar, o ritual de todos os dias pensar no fim do dia o que funcionou e o que não funcionou na sua performance, o ritual de, todos os dias ou todas as semanas reunir com o tal grupo de pessoas que os apoiam e os desafiam.

Não sei se já ouviste muitas das entrevistas do podcast, deste podcast, mas de cento e muitas entrevistas, talvez consigas encontrar um ou dois em que os rituais serão menos claros, mas todos têm. É impossível  construir algo a não ser peça por peça, não há nada, mesmo nada, que apareça sem causas e condições para que surja.

A pergunta de um milhão é: Queres criar ou ser criado?

Queres olhar para a tua vida e aperceberes-te que “tu” nunca falaste, que foi sempre a voz de outros que saiu da tua boca?

Os rituais são os pilares, a estrutura base, o porto seguro onde remendas o casco do barco depois de navegares em águas revoltas, são o farol que te ajuda a não perderes a noção de quem és, onde estás e para onde queres ir.

Não tenhas problemas numa fase inicial copiar rituais de outros, experimenta, testa, mas considera sempre rituais que te criam uma estrutura sobre a qual operas, seja chegar sempre à mesma hora ao teu local de criação, seja ler todos os dias em momentos escolhidos por ti, seja um momento em que questionas as tuas percepções, um ritual em que aprecias o que de bom te acontece, reconhecer a ajuda de alguém na tua vida, seja o ritual de praticares desporto, o ritual de meditar, o que quer que seja que sintas que te aproxima de ti e daquilo que queres ser e fazer.

Fico à espera dos teus rituais, e quando pensares sobre eles, pensa naqueles que melhor te servem, aposta nesses, e partilha-os com os que sabes também precisar desse porto de abrigo.

Se algum dia vou entrevistar a tal pessoa? Não sei, se acontecer, sei que não vou levar a carga do que aconteceu, porque nunca cheguei a ser atingido.

Fala comigo, pergunta, partilha. rui@falarcriativo.com

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