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Ângulo morto

“Falhar não é fatal, mas falhar mudar, poderá ser.”

John Wooden

Quem conduz provavelmente já se apercebeu que existe uma zona do espelho retrovisor onde não conseguimos ver um carro que está ao nosso lado, e ainda não é visível pelo vidro lateral, é esse o ângulo morto, uma coisa que está ali, existe mas que não conseguimos ver.

Em conversa com uma amiga muito próxima, reparei que também nós temos vários ângulos mortos na maneira como percepcionamos o mundo e como agimos.  As coisas estão lá, crenças que temos, visões deturpadas da realidade, conceitos ultrapassados, e comportamentos que temos e que nem nos apercebemos, e nem sabemos muitas vezes a razão pela qual agimos desta ou daquela forma.

Cristalizamos comportamentos e maneiras de pensar, e deixamos de conseguir ver coisas que estão ali, mesmo ao nosso lado, apenas a nossa perspectiva é fixa, e se não houver qualquer movimento da nossa parte ou do objecto que não conseguimos ver, ficará escondido, imperceptível, mas que vai condicionando muita da nossa maneira de estar no mundo.

Nesta conversa consegui que essa amiga se apercebesse que determinadas atitudes tinham origem numa crença da qual não tinha noção, como me disse, foi só naquele momento é que “lhe caiu a ficha” e conseguiu perceber o que estava a fazer.

Eu próprio reparei recentemente que tenho algumas ideias erradas relativamente ao dinheiro que apenas me prejudicam.

Desde muito cedo tive contacto com histórias de pessoas ricas que tratavam de forma incorrecta os outros, só pelo simples facto de o dinheiro que tinham lhes dar algum poder. Outras histórias eram de famílias destruídas por questões de heranças, de irmãos que enganaram irmãos para se aproveitar de dinheiro ou de propriedades. Mais um padrão de comportamento dentro da minha família, era de que ricos eram outras pessoas, eram algo que nós não éramos, e que de certa forma nunca iríamos ser.

Não que tivéssemos uma vida má, não posso dizer que me tivesse faltado nada de essencial, mas luxos como ténis de marca, viagens para a Disneyworld, brinquedos caros, foram coisas que não tive.

Havia por parte de alguns membros da minha família, sobretudo avós, uma reverência, um tratamento diferenciado a quem tinha dinheiro, e eu não achava justo, não eram mais nem menos do que os outros.

A infelicidade que vi em muitas pessoas à minha volta por “ter de fazer algo apenas pelo dinheiro” fez com que associasse o ganhar dinheiro como vender-me, vender a alegria a troco de notas e moedas.

Por tudo isto, na minha cabeça associei dinheiro, ter mais dinheiro, como algo que tornava as pessoas más, criava divisões familiares, era coisa para os outros, era motivo para tratamento diferenciado e injusto, e ser feliz era diferente de ter dinheiro.

E como é que isso se tem reflectido na minha vida?

Olha, em alturas que tenho tido mais dinheiro começo a ter comportamentos gastadores, que fazem a que volte a um nível financeiro de dificuldade, de luta, um nível associado a alguém que luta por ser feliz sem se vender, que não coloca o dinheiro numa posição de me achar superior a ninguém, e que faz com que não me identifique com as pessoas ricas e injustas.

Na hora de pedir o valor justo pelo meu trabalho, encolhia-me, não convinha ganhar muito para não ter muito dinheiro e me tornar numa dessas pessoas ricas e injustas.

Na minha família era repetida muita vez uma expressão:

“Atrás de todas as grandes fortunas, está uma carteira roubada.”

A mensagem que passava era que para se ser rico, para ter dinheiro, não havia forma honesta, era necessário fazer algo de errado.

Foi necessário algum trabalho interno através de escrever no meu diário, de meditar, de pensar, de questionar determinadas coisas para me aperceber que tinha uma crença baseada numa associação que não é necessariamente verdade. Comecei a confrontar os modelos que me tinham sido passados com exemplos de pessoas que têm dinheiro, são humildes, justas, tolerantes, bondosas, que não é o dinheiro em si que faz com que alguém aja de forma certa ou errada. Haverá situações em que o dinheiro, o querer dinheiro faça algumas pessoas tomar decisões erradas como roubar, mas o dinheiro é também algo nos pode proporcionar uma vida mais tranquila, com menos preocupação.

Exemplos existem de pessoas com muito dinheiro e infelizes, pessoas com pouco dinheiro e felizes, mas também há pessoas com muito dinheiro e felizes, e pessoas com pouco dinheiro e infelizes, mas fundamentalmente, quando as necessidades básicas estão satisfeitas, o dinheiro pode ser uma ajuda preciosa para nós e aqueles que nos rodeiam.

O dinheiro deve estar ao nosso serviço, e não sermos nós que estamos ao serviço do dinheiro.

Quando nos tornamos dependentes seja do que for, aí sim teremos as atitudes erradas. Um copo de vinho não é obrigatoriamente mau, mas no momento em que sentimos um impulso de roubar uma garrafa para satisfazer o desejo de beber, aí temos um problema grave.

Convém irmos questionando porque razão fazemos o que fazemos, e pensamos o que pensamos, nós podemos ser a principal causa da nossa infelicidade quando não nos apercebemos de rotinas de pensamento que estão lá, no tal ângulo morto.

Fala com pessoas que estimas, e que sabes que são honestas contigo, mesmo que muitas vezes te digam aquilo que não gostas de ouvir, serão muitas vezes capazes de ver algo que tu simplesmente não vês pelo sítio onde estás.

Todos temos as nossas crenças que nos limitam, todos falhamos, mas não ser capaz de mudar, como diz o John Wooden, talvez possa ser a a falha fatal.

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